sexta-feira, 30 de março de 2012

O Bebê de Rosemary [1968]


(de Roman Polanski. Rosemary's Baby, EUA, 1968) Com Mia Farrow, John Cassavetes, Ruth Gordon, Sidney Blackmer, Maurice Evans, Ralph Bellamy, Victoria Vetri. Cotação: *****

É um dos filmes mais cultuados no gênero do suspense, fazendo escola graças à sua maneira simples e, ao mesmo tempo, sem se entregar ao horror escancarado e informal. Tudo em “O Bebê de Rosemary” é subentendido, charmoso e inquietante. Da sinistra canção de ninar que inicia a fita até o final que foge do padrão (e que confirma a excelência do filme), a obra tece uma história que foi lindamente moldada por Roman Polanski, que carimbou seu passaporte para os Estados Unidos, terra onde só traria tragédias em sua vida pessoal, como a morte de sua esposa, a saudosa atriz Sharon Tate, assassinada por Charles Manson em 69, o ano seguinte a este filme.

A história gira em torno de Rosemary Woodhouse (Mia Farrow) e Guy (John Cassavetes), um casal recém chegado num novo apartamento, onde finalmente realizariam seus planos de fixar-se e ter filhos. Até que a morte de uma vizinha faz com que se aproximem de um casal de velhinhos que moram ao lado deles, o intelectual Roman Castevet (Sidney Blackmer) e a intrometida Minnie (Ruth Gordon). Com a carreira de ator de Guy começando misteriosamente a fazer sucesso e a boa notícia de que finalmente ficou grávida, Rosemary demora a se dar conta de que, talvez, tenha sido vítima de uma seita da qual os velhinhos presidem para adorar o anticristo, e na qual o seu marido tenha oferecido a própria esposa como mãe do filho do demônio em troca de fama.

Antes de qualquer coisa, “O Bebê de Rosemary” é um grande estudo de personagens. A começar pela protagonista, uma leitura paralela estaria no fato de que tudo o que ela presencia estivesse relacionado à sua educação católica, que por vezes é mostrada em pequenos flashbacks. Óbvio que essa possível teoria será refutada antes mesmo do terceiro ato, mas o cuidado com que Polanski toma como prioridade nesse seu primeiro trabalho internacional é a prova da qualidade de direção do filme. Reparem, por exemplo, nas situações de desconforto do personagem de John Cassavetes diante da aproximação de Rosemary nas descobertas que ela tarda a descobrir.

Mia Farrow, antes de virar esposa e musa de Woody Allen, fez este que é o melhor trabalho de toda a sua carreira. Sua transformação física é uma das coisas mais impressionantes neste filme, que custou a ela até o casamento com Frank Sinatra, com quem foi casada por dois anos e que acabou (ao que parece) por conta do compromisso de Mia com o trabalho. Seu cabelo curto acabou virando marca registrada e as reações de sua Rosemary viraram ícones do terror. Outra atriz que está fenomenal é Ruth Gordon, que conquistou o seu Oscar de melhor atriz coadjuvante interpretando a vizinha fofoqueira que, de forma estranha, vai se tornando íntima de Rosemary.

Baseado na novela de Ira Levin (1929–2007), “O Bebê de Rosemary” com certeza está na lista de muita gente como “um dos melhores filmes de horror já feito”, e tem muito que confirmar neste título. Foi um dos primeiros a levantar uma questão filosófica que muitos filmes do gênero – atualmente – deve à obra: afinal, por que somente quando estamos no desespero da dor, é que somos mais prudentes?

Deixe que Rosemary responda isso por você.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Tootsie [1982]


(de Sydney Pollack. Idem, EUA, 1982) Com Dustin Hoffman, Jessica Lange, Teri Garr, Dabney Coleman, Charles Durning, Bill Murray, Sydney Pollack, Geena Davis. Cotação: *****

“Tootsie” é daqueles filmes que tem milhares de fãs. Não chega a ser precursor do tipo de comédia que ele apresenta (homem se vestindo de mulher até pode ser uma descrição reducionista do filme, mas numa apresentação rápida, é isso o que acontece), mas é um herdeiro quase não atribuído de Billy Wilder. O filme, que acabou culminando em uma briga séria entre Dustin Hoffman, o grande idealizador da obra, e Sidney Pollack, o realizador do filme e, se não fosse o trabalho esplêndido de Dustin, seria um dos principais responsáveis por fazer de “Tootsie” uma comédia tão boa.

Michael Dorsey (Dustin Hoffman) é um enérgico professor de teatro que se encontra em dificuldades para conseguir bons papéis. Ou melhor, para conseguir qualquer trabalho para mostrar sua arte. Desejando finalmente montar uma peça na qual ele estrela com Sandy (Teri Garr), uma de suas alunas, ele se inclina até em trabalhar na cozinha de um restaurante. Sem sucesso na dramaturgia e sem conseguir fazer seu agente (interpretado pelo próprio Pollack) conseguir novos trabalhos, ele resolve encarnar a figura de Dorothy Michaels, e estrelar uma novela num papel que vai ganhando cada vez mais destaque, e chamando a atenção de Julie (Jessica Lange), sua colega de elenco, que nem sabe que Dorothy é um homem, e que está se apaixonando por ela.

Quando digo que Dustin Hoffman foi o grande idealizador do projeto, não é por simplesmente estrelar o filme que lhe garantiu maior credibilidade no ramo da comédia. Ele ainda estrelava “Kramer Vs. Kramer” (1979) quando teve a idéia de intercalar o masculino e o feminino num único filme. Ele imaginou o projeto e seguiu em frente, talvez já esperando um trabalho incrivelmente bem recepcionado, que vem do reconhecimento da suas brincadeiras de interpretações. Da mesma forma, estão muito bem a estridente Teri Garr e Jessica Lange (que não mudou muita coisa quase trinta anos depois). É um trio perfeito, inseridos num elenco que ainda conta com Bill Murray fazendo suas convencionais gags, e Geena Davis em início de carreira.

“Tootsie” rendeu o primeiro Oscar para Jessica Lange (ela viria a ganhar como melhor atriz cerca de dez anos depois pelo filme “Céu Azul”, para depois cair no limbo que a está hospedando até hoje), além de ser indicado nas categorias de ator (muito bem merecido), outra de atriz coadjuvante (para Teri Garr), edição, fotografia, roteiro original, som e música (o grande sucesso "It Might Be You", de Stephen Bishop).

Ao ser visto hoje em dia, “Tootsie” poderia muito bem parecer um filme datado, e cheio de situações que forcem a barra, afinal, brincar com gêneros é tão batido quanto brincar com linguagem ou determinadas minorias. E a prova de que um roteiro muito bem amarrado e – o principal - moderação numa infinidade de situações repletas de possibilidades de piadas, somados, resultam em um filme que fica quase impossível não agradar. Por sorte (ou não), “Tootsie” acabou firmando um gênero a parte da comédia, mas que infelizmente não foi seguida a cartilha recomendada pelo Prof. Pollack.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Edward Mãos de Tesoura [1990]


(de Tim Burton. Edward Scissorhands, EUA, 1990) Com Johnny Depp, Winona Ryder, Dianne Wiest, Anthony Michael Hall, Kathy Baker, Kathy Baker, Alan Arkin, Vincent Price. Cotação: ****

Nunca é tarde para embarca no universo sombrio que só Tim Burton consegue realizar. Tudo é muito particular, e mesmo que não saibamos identificar o contexto em que seus filmes se encontram, é por um motivo muito simples: Tim Burton define sozinho o tempo e o espaço de suas obras. Um exemplo cabal está neste “Edward Mãos de Tesoura”, que ele realizou graças a um desenho que ele fez ainda adolescente. O filme se passa em uma região que nos remete aos anos 60, num bairro bem típico desta época, com uma rotina ensaiada e mulheres instituídas no modo americano de viver, em contrapartida, existe a jovialidade e rebeldia dos anos 70 e os exageros estilísticos dos anos 80. Afinal, quando se passa o filme?

Simples. Não há resposta para esta pergunta por dois motivos óbvios: O primeiro é que “Edward Mãos de Tesoura” não é, nunca foi, e nem pretende ser um filme explicativo, porque é, acima de qualquer coisa, uma fábula. O outro motivo, já previamente explicado no parágrafo anterior, diz respeito à intenção de Burton em recriar um universo próprio, pegando referências de variadas épocas para plastificar sua obra como ele planejou. O resultado ficou tão bom, que até pouco tempo atrás, “Edward...” era seu filme preferido, já que ele conseguiu transpor suas referências de vida (o bairro onde se passa a história é baseado em Burton, Burbank, lugar onde Burton cresceu) num filme que fez época, e muita gente ainda guarda ótimas recordações.

Num bairro pacato de um subúrbio americano, Peg (Dianne Wiest) faz o possível para conseguir vender os seus cosméticos, batendo de porta em porta, sempre recebendo recusa da vizinhança. Até que ela, corajosamente, resolve tentar a sorte num casarão que fica no cume de uma montanha. Com fama de mal assombrado, o lugar abriga uma criatura singular. Com formas humanas, mas possuindo o que restou da época em que ainda era uma máquina (possui tesouras no lugar das mãos), o pálido Edward (Johnny Depp) nunca chegou a ser um humano completo, já que seu criador (uma espécie de Frankstein poético) morreu antes disso. Peg, mesmo assustada, acolhe Edwards, o levando para casa. O novo hóspede acaba virando a atração do bairro, chamando a atenção de todas as fofoqueiras. Só não consegue a atenção devida de Kim (Winona Ryder), filha de Peg, por quem Edward se apaixona.

Mesmo explicando tão minuciosamente a história, eu apostaria que muitos já conhecem a trama de “Edward Mãos de Tesoura” de cor e salteado. É que o filme já foi exaustivamente reprisado na TV e é um dos queridinhos de toda uma geração. Também é um dos trabalhos mais “colorido” do universo gótico de Tim Burton, que soube muito bem retratar o primeiro contato com o diferente de mais um de seus notáveis seres “estranhos”. Quase todos os protagonistas dos filmes do cara possuem um quê de “ser mal compreendido por um mundo perverso”. Edward, apesar de ser mais um exemplo, se torna único pelo seu estilo meio punk (é muito relacionado a Robert Smith, líder da banda The Cure), se tornando de vez uma das figuras mais marcantes da fase sóbria de Burton.

A trilha sonora, criada pelo Danny Elfman (parceiro de longa data de Burton e Gus Van Sant e marido da atriz Bridget Fonda) considera este como um de seus melhores trabalhos. Johnny Depp, que já tinha feito filmes juvenis (“A Hora do Pesadelo” e Cry Baby”) e sérios (“Platoon”), precisava de um empurrão profissional para deslanchar. E assim o fez. A parceria com Burton duraria anos com bons (“Ed Wood”) e maus momentos (como a dispensável refilmagem de “A Fantástica Fábrica de Chocolates”). O filme também traz Winona Ryder num dos melhores momentos de sua carreira, que se consagraria de vez alguns anos mais tarde, com direito à premiações importantes, até ruir de vez com sua polêmica cleptomania. Ela e Depp, inclusive, até chegaram a namorar a partir dessa época (ele chegou tatuar o nome da atriz no braço, tendo que remover com cirurgia quando o namoro chegou ao fim.)

“Edward Mãos de Tesoura” é um filme querido por muita gente, o que demonstra que sua intenção de funcionar como um conto moderno foi muito bem recebido. É também um dos filmes mais “família” de Tim Burton, que voltaria para a escuridão logo em seguida. Válido para matar as saudades da infância de muita gente.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Jovens Adultos [2011]


(de Jason Reitman. Young Adult, EUA, 2011) Com Charlize Theron, Patton Oswalt, Patrick Wilson, Elizabeth Reaser. Cotação: ****

Eu estava torcendo bastante para que tudo desse certo para esse filme, que marca a volta da parceria entre o diretor Jason Reitman e a roteirista Diablo Cody, dupla que nos entregou o filme “Juno” em 2007 com enorme sucesso. Para bem, “Jovens Adultos” não chega a decepcionar, sendo uma obra com as tiradas e citações pops típicas de Diablo, uma mulher que adora acrescentar elementos de tudo que a cerca ou suas nostalgias. Nesse caso, seu fantoche é uma mulher da sua faixa etária, e exatamente por isso, tudo o que é relacionado ao que a personagem pensa ou age, está muito mais orgânico do que a experiência com Juno, que era uma colegial, logo, muito jovem para ter o mesmo bom gosto e convicção que a sua criadora. Aqui, Diablo vai buscar todos os nossos receios de futuro enquanto estamos no colegial em uma protagonista mesquinha, vazia e muito egoísta. E em nenhum momento, poderíamos odiar tanto uma personagem, ao mesmo tempo em que ficamos tão curiosos perante a sua imprevisibilidade.

A tal personagem é Mavis Gary (Charlize Theron). Logo de início, sabemos que ela se deu bem na vida. Mora em um ótimo apartamento em Minneapolis, uma carreira de escritora de uma série best-seller para o público juvenil (categoria denominada “young adult” por lá, vem daí o título), além de ser loira, alta, magra e linda. Aos 37 anos, recém divorciada e prestes a escrever o último livro de sua série, ela recebe um e-mail do primeiro namorado, Buddy Slade (Patrick Wilson), com a foto de sua filha recém-nascida. A imagem causa uma inquietude em Mavis, por ter certeza de que o destino sempre os quisera juntos. Por conta dessa convicção, Mavis, junto do seu pequeno cachorro, parte rumo à Mercury, cidadezinha da qual saiu e odeia, por achar um dos piores lugares pra se viver e só ter gente acomodada. Lá, ela reencontra Matt Freehauf (Patton Oswalt), o nerd dos seus tempos de colégio, que sofreu uma agressão que o deixou com dificuldades de andar, além de ter causado danos irreversíveis ao seu pênis. Mas a grande missão de Mavis é reconquistar o seu amor colegial, mesmo que agora ele seja um marido que ama sua esposa e um pai dedicado.

O mais interessante em “Jovens Adultos”, além de todos esses receios de tempo de colegial (onde estaremos? Conseguiremos sair do lugar que tanto nos incomoda? vamos nos dar bem?), é a forma como a própria Diablo Cody brinca com a questão da imagem. Mavis Gary, aos poucos, vai se tornando uma poser de primeira linha. Apesar de tudo aquilo que, para muitas pessoas é um sinal de privilégio, ela mesma faz questão de se mostrar ilusória. Mavis é, na verdade, uma ghost writer, escrevendo livros para outra pessoa levar os créditos. E os livros nem fazem mais sucesso. Sua própria beleza esconde o fato de ser compulsiva, que arranca fios de cabelo como mania, a obrigando a usar perucas, além de bojo e muitos tratamentos de pele. Isso, além da depressão que ela beira por não se achar no próprio mundo (vai se utilizando dos próprios escritos para fazer alguma relação que faça sentido pra ela), e ter sido, é claro, uma das alunas mais odiadas nos tempos de colégio. Aquele tipo que desprezava os nerds, e vivia escondida com os esportistas atrás da escola.

“Jovens Adultos” brinca com esse “retorno à cidade de onde saiu e nem pensa em voltar” da maneira mais bem humorada possível. Isso sem ser, propriamente, uma comédia (tem gente que confunde bom humor com filme pra se dar risadas). Não chega a ser espalhafatoso, muito menos “moderninho”, como o primeiro grande trabalho de Diablo Cody e seus filmes seguintes eram. Sinal que sua experiência na TV, com a série “United States of Tara”, a fez se tornar um pouco mais segura para arriscar numa história mais adulta. Charlize Theron está simplesmente sensacional no filme, e não há dúvidas de que está em um nível da carreira em que se pode demonstrar todo o seu talento, sem precisar, contudo, esconder sua beleza inigualável. Em outras palavras, sem precisar ficar feia para provar ser boa atriz (como teve que fazer em “Monster – Desejo Assassino).

Uma pena que a distribuidora esteja protelando tanto o seu lançamento aqui no Brasil. Nesse caso, quem perde são os próprios causadores de tantos atrasos, já que o filme caiu no mundo da internet há um bom tempo, e em ótima qualidade.

terça-feira, 20 de março de 2012

O Porco Espinho [2009]


(de Mona Achache. Le Hérisson, França, 2009) Com Josiane Balasko, Garance Le Guillermic, Togo Igawa, Anne Brochet, Ariane Ascaride, Wladimir Yordanoff. Cotação: *****

Acabei descobrindo esse filme por acaso, ao fuçar na internet alguma coisa pra assistir e matar o tempo de uma tarde de sábado. Fiquei atraído pela interessante sinopse, que remonta uma adaptação feita pela então estreante Mona Achache, baseando-se no livro "L'élégance du Hérisson" (conhecido aqui como “A Elegância do Ouriço”), obra de 2006 da professora de filosofia Muriel Barbery, que se tornou um grande sucesso literário em vários países. O que descobri, na verdade, foi um filme excelente, que não descontrai de uma forma escapista. Durante todo o tempo, a obra (aqui eu não desvencilho o que é mérito do filme ou do livro) tem uma aura provocativa que não tem como ficar isento das questões que cercam a protagonista mirim. E dessas questões, surge uma grata surpresa.

Paloma (Garance Le Guillermic) é uma retraída garotinha que mora em um prédio de classe média alta em Paris. Inteligentíssima e com um apurado senso de realidade, ela apresenta sua família com um leve tom de sarcasmo para um documentário que ela está filmando. O fato é que ela determinou que no dia em que completará 12 anos, ela vai cometer suicídio. Até lá, Paloma segue documentando sua vida (e a de todos que a cercam), ao mesmo tempo em que tenta descobrir o que é, de fato, a vida e em como ela pode ser tão trivial a ponto de não evitar a morte. Ela acaba construindo uma relação de proximidade com Renée (Josiane Balasko), a desconfiada zeladora de seu prédio. A chegada de um novo residente, o japonês Kakuro (Togo Igawa), também será um fator determinante para o desenvolvimento da nova sintonia entre Paloma e Renée.

Sabe aquele famoso provérbio de que fulano acabou sendo mordido pela pulga do questionamento? Pois é, Paloma está inquieta justamente porque está questionando um fato iminente de nossas vidas: a morte. Estar obcecada com isso a torna ainda mais pensante, fazendo com que insista na pergunta “O quão efêmera é a vida?”, e chega, inclusive, a teorizar o seu recém adquirido conhecimento, respondendo a sua pergunta se utilizando do peixe dourado de sua irmã mais velha para construir uma metáfora. Para Paloma, a vida nada mais é do que um aquário, onde estamos determinados a viver naquele espaço, para no final das contas, acabarmos em um saco plástico. Mesmo sendo tão difícil responder as questões de Paloma (afinal, se trata de uma criança obcecada por temas que não são direcionadas à sua faixa etária), ela acaba elaborando a sua própria filosofia. E é exatamente essa a saída que tanto deveríamos priorizar nas nossas vidas e na educação dos jovens, ainda na infância de cada um.

Os demais personagens também são, de algum modo, seres pensantes. Em dado momento, a mãe de Paloma conversa com pessoas que não estão lhe dando atenção, dizendo que ela pensava que todos nós tínhamos um dado limite de palavras a serem ditas no decorrer de nossas vidas. Quando finalmente acabasse a nossa cota de palavras, já seria hora de padecer, e por isso, ela falava o mínimo possível quando jovem, para poupar a sua cota de palavras, e por conseqüência, viver mais. Isso é filosofia. A zeladora, de outra maneira, não apresenta uma teoria em busca de respostas, mas relativiza a sua filosofia de vida. É solitária, mas sempre terá a companhia de sua biblioteca pessoal (é uma amante da leitura), e tem consciência de que se recolher à sua insignificância por ser zeladora é o bastante para que as pessoas a respeitem por conveniência, mas no fundo, é uma pessoa desconsiderada. Para ela, “se uma pessoa respeitada morre, se torna um causo importante. Mas se for um zelador, é algo do cotidiano”. Acho que essas pequenas e sorrateiras amostras de que os personagens são ao mesmo tempo comuns e filósofos (do modo mais descompromissado da palavra) é o mais gratificante no filme.

O cinema europeu não faz questão de agradar a maior parcela de público no desfecho dos filmes (como o norte americano insiste em fazer, ou seja, colocar a opinião da maioria em primeiro lugar), e por isso, o final de “O Porco Espinho” não é algo esperado. Sabemos que vamos nos surpreender, embora seja obrigatória uma conclusão no mínimo satisfatória. E isso acontece de uma maneira brilhante. [Spoilers a seguir]. A resposta que Paloma desenvolve, dada a fatalidade que acontece à Renée, é de que pouco importa querer adiantar a sua própria morte, cometendo um suicídio que não responderá nada, porque o que está em jogo não é o que é a morte, ou onde realmente estamos quando essa hora chega, mas sim o que estamos fazendo. Renée, no seu falecimento, estava “pronta para amar”. Só isso já torna “O Porco Espinho” um filme absolutamente didático e arrasador. Lindo mesmo. [Fim dos spoilers]

Certamente será uma obra de grande utilidade para mim em uma futura aula expositiva.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Sete Dias com Marilyn [2011]


(de Simon Curtis. My Week with Marilyn, Reino Unido, 2011) Com Michelle Williams, Eddie Redmayne, Julia Ormond, Kenneth Branagh, Emma Watson, Geraldine Somerville, Judi Dench. Cotação: ***

Marilyn Monroe (1926–1962) é, sem dúvida, uma das figuras mais icônicas do cinema. Ela já nem é mais um simples nome, e sim um símbolo de uma época, do imaginário masculino, de uma nova maneira de atuar, de brincar com a certeza de que todos os homens a desejam e todas as mulheres a tomam como inspiração. O mais impressionante é saber como uma figura desse nível, que representou tanto não só para o cinema, nunca tenha ganhado uma cinebiografia que se preze. Esse “Sete Dias com Marilyn” não chega a ser uma biografia, pois vai acompanhar uma semana de um determinado acontecimento envolvendo nossa querida Marilyn, que não é nem a protagonista única do filme, e sim Colin Clark (Eddie Redmayne), figura real que nunca negou o feitiço que a diva Marilyn o causou quando se conheceram. Ele escreveu dois livros - "My Week with Marilyn" e "The Prince, the Showgirl and Me" – que serviram de material base para o longa.

No filme, Colin está com 23 anos, ainda inexperiente, mas alimentando o sonho de trabalhar com cinema. Ele consegue emprego no escritório de Sir Laurence Olivier (Kenneth Branagh), que está prestes e dirigir e estrelar uma grandiosa produção, na qual terá a deusa Marilyn Monroe (Michelle Williams), fenômeno na época, como seu par. O filme em produção se chama "O Príncipe Encantado", de 1957, e que em sua semana de gravação - ocorrida em Londres - Laurence teve que lidar com o comportamento inseguro de Marilyn. Colin trabalha como terceiro assistente na produção do filme, ficando cada vez mais vislumbrado com o novo mundo, e principalmente, com a presença de Marilyn. Esta, cada vez mais angustiada pela ausência de seu marido, o dramaturgo Arthur Miller (autor de obras como “Morte de um Caixeiro Viajante” e As Bruxas de Salém”), cria uma aproximação com Clarck, convidado por ela a passar um período em sua casa de férias.

Não sei ao certo se serei trucidado por isso, mas particularmente, eu não gostei de todo esse amor pela atuação de Michelle Williams. Pra começar, ela nunca teve nada de Marilyn, e não consigo entender a sua escalação (eu sempre imaginei alguém como Christina Hendricks nesse papel). Tantos enchimentos chegam a incomodar. Ela é bonitinha, boa atriz (adorei sua atuação desafiadora em “Namorados Para Sempre”, indicada no ano passado), mas definitivamente ela não é Marilyn, e não a trouxe para o filme. Podem até falarem que Michelle fez uma personificação diferente, elucidou a essência de Marilyn e não uma composição com a cópia descarada da figura. Mas, convenhamos, o desafio aqui – para o bem da própria história – é vermos uma Marilyn repleta de bajuladores, no auge de sua carreira, mas passando por situações que exigem uma pressão ferrenha. Ou seja, sim, Michelle evoca uma Marilyn menos pública e mais pessoal. Porém, sua dissonância com o poderio do furação Marilyn Monroe é tão grande que não me fez envolver-se com o filme por completo.

A comentar sua indicação ao Oscar, até acho um perjúrio tê-la como finalista, ao invés de Tilda Swinton fazendo das tripas coração no ótimo “Precisamos Falar Sobre Kevin

Sobre o filme em si, nada de novo. É correto, não traz grandes novidades. Kenneth Branagh está excepcional, ao encarnar um Laurence Olivier que fica num viés entre a raiva que sente ao trabalhar com uma atriz que não cumpre horários e esquece suas falas, e, ao mesmo tempo, é mais um dos homens que ficam atraídos automaticamente quando a vê acertar em cena. O melhor do filme, eu diria, é justamente o tratamento que é dado a esse encontro. Em um momento específico, Colin Clarck resume muito bem qual é a do casal: “Laurence Olivier é um grande ator, mas quer ser uma estrela do cinema. Você [Marilyn] é uma estrela, que quer ser uma grande atriz”. Só lembrando que, na época em que se passa o filme, Laurence era casado com Vivien Leigh, a eterna Scarlett O'Hara de “...E O Vento Levou, aqui interpretada por Julia Ormond. Vivien sabe muito bem o perigo que Marilyn representa na vida dos homens, dos quais ela se envolvia com os mais paternais possíveis, e que o filme até brinca com esse fato, digamos, mais volúvel da loira.

“Sete Dias com Marilyn” é um filme mediano, mas que certamente vai agradar bastante, principalmente aos fãs de Marilyn.

quarta-feira, 14 de março de 2012

O Abrigo [2011]


(de Jeff Nichols. Take Shelter, EUA, 2011) Com Michael Shannon, Jessica Chastain, Tova Stewart, Shea Whigham, Katy Mixon, Natasha Randall. Cotação: ****

Foi este filme modesto que conseguiu o êxito de, sorrateiramente, alçar categorias importantes no último Independent Spirit Awards. Foi indicado nas categorias de filme, diretor, ator, atriz coadjuvante e prêmio especial para produtores. É surpreendente por um lado, já que não migrou para outras premiações, tendo morrido ainda longe da praia, mas completamente compreensível por outro, já que o filme é altamente performático e competente no que diz respeito à própria narrativa. É bem possível que passe despercebido por muita gente, o que é uma pena, pois o “O Abrigo”, antes de ser uma vitrine para o trabalho fenomenal de Michael Shannon, é uma obra que possui uma tensão estranha, que chega a dificultar a minha parte em tentar resumir isso em palavras.

Em Ohio, Curtis (Michael Shannon) vive de maneira pacata com sua esposa Samantha (Jessica Chastain) e sua filha deficiente auditiva. Trabalhando em manutenção de poços, ele segue no seu cotidiano de maneira tranqüila. Até que uma chuva com uma coloração estranha e aspecto oleoso, que mais tarde é adicionada a uma série de pesadelos e alucinações, faz com que ele se fixe na idéia de que todos estão por enfrentar uma grande catástrofe natural, e por isso, ele deve reformar um abrigo de terremotos no quintal de sua casa. Atormentado pelas visões fatalistas cada vez mais constantes e amedrontadoras, ele não sabe ao certo se tudo o que presencia é real ou um indício de que possa estar caminhando para o mesmo destino de sua mãe, internada em uma clínica psiquiátrica por ter sido diagnosticada com esquizofrenia paranóide aos 30 anos.

Falar de “O Abrigo” sem falar do trabalho do ator Michael Shannon é algo impossível de ser feito. Ele praticamente encarna o seu personagem já na sua própria imagem. Shannon tem o tipo expressivo, estranho, um q de psycho mesmo, que nos deixou estarrecido em “Foi Apenas Um Sonho” (2008). Casou brilhantemente no desenvolvimento do personagem, com sua personificação perfeita, tanto nos momentos de sensatez quanto no ápice do descontrole do protagonista. Jessica Chastain, que interpreta a esposa dúbia de Curtis, encabeça mais um trabalho, complementado nada menos que sete filmes lançados somente em 2011, o que a torna uma das revelações mais promissoras do momento (está indicada ao Oscar de coadjuvante por “Histórias Cruzadas”, mas foi muito mais elogiada pelo seu singelo trabalho em “A Árvore da Vida”). Eu, pra ser bem sincero, só conheci o real potencial de Chastain somente com este filme, pois aqui (ao contrário do que acontece pontualmente em “Histórias Cruzadas”), ela não se resume a uma única função na história, elevando o companheirismo de sua personagem para uma prova real de tudo o que acontece com ele.

Um ponto bem pertinente do bom roteiro do filme, é que o protagonista, ao contrário do que somos levados a acreditar, não é tratado de forma assumidamente desequilibrada. Logo nos primeiros sinais de que algo estranho está acontecendo consigo, ele vai lidando da forma mais racional possível, pesquisando em bibliotecas sobre o que seria o seu problema (se é que tem algum) e procurando profissionais da saúde mental para que, ao menos, descubra se suas visões são premonitórias ou um estágio inicial de uma esquizofrenia relacionada à sua própria genética. Ou seja, Curtis não se entrega a uma única saída, que seria a mais indolente de todas as possíveis: a crença cega. E isso é puramente mérito do texto de Jeff Nichols, também diretor do filme, que já havia trabalhado com Shannon em "Shotgun Stories" (2007) - que possui uma estética bem similar ao próprio “O Abrigo” – e no ainda inédito "Mud", previsto para estrear no ano que vem.

Com um dos finais mais relativos (no melhor sentido da palavra) que vi nos últimos meses, “O Abrigo” deveria ser mais lembrado por aí. E como ainda não estreou por aqui, essa oportunidade ainda pode acontecer.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Simplesmente Alice [1990]


(de Woody Allen. Alice, EUA, 1990) Com Mia Farrow, Alec Baldwin, Judy Davis, Blythe Danner, William Hurt, Joe Mantegna, Cybill Shepherd. Cotação: ****

Não é um dos filmes mais badalados de Woody Allen, mas é um dos exemplos mais claros do porquê seu modus operandi é tão querido por crítica e público. Tudo é muito simples e ele não faz questão de bolar algo muito sisudo para caracterizar uma obra até mesmo poética. E não é por ser uma comédia, pois uma comédia não precisa estar vinculada ao “teor adulto” para ter boa recepção dos mais rigorosos, e sim por tratar respeitosamente o seu público com romantismo, fantasia, crítica social, psicologia, religião e questionamentos éticos. Misture tudo isso com doses bem calculadas e eis “Simplesmente Alice”.

Como o título já sugere, Mia Farrow (em um dos últimos trabalhos como musa do diretor, como em "A Rosa Púrpura do Cairo") é Alice, uma nova-iorquina que poderia até ser considerada fútil. Rica, casada com um médico (William Hurt), não liga para os filhos, e prefere ficar horas comprando com as amigas fofoqueiras a seguir seus objetivos de vida. Numa ida ao colégio de um de seus filhos, ela conhece o músico divorciado Joe (Joe Mantegna), que a atrai sexualmente, mas é incapaz de cometer adultério por ter preceitos católicos. Até que uma ida ao recomendado Dr. Yang (Keye Luke) faz com que, misticamente, ela se torne uma pessoa mais arisca, e questione boa parte de sua vida, dando valor a algumas partes dela, e reconhecendo que está infeliz em outras.

Para boa parte dos fãs de Woody Allen, Mia Farrow pesa mais negativamente do que ao contrário. De minha parte, a atriz nunca foi assim, digamos, tão importante a ponto de estigmatizar o auge ou declive de Woody, já que o responsável maior por isso é justamente ele, que escreve, dirige e até atua nos seus próprios trabalhos. Porém, reconheço que a antipatia por uma musa pode causar, sim, alguma incompatibilidade entre a obra e seu público. Entretanto, Mia prova neste filme que possui talento cômico. A conversa de sua personagem com Joe, sob o efeito da desinibição recém conquistada, está lá para comprovar o que estou afirmando.

Woody também apresenta uma tese bem perspicaz. Durante toda a história, Alice tenta vender um roteiro para a TV, sempre negada pela responsável de um canal, afirmando que uma história pra fazer sucesso hoje em dia (digo isto porque a crítica ainda é atual) deve se ater somente a um público que não quer saber de uma história comum, sem indícios de tramóias e um personagem que contenham um arco bem desenvolvido, num ambiente que não esteja ligado a violência (não foram exatamente estas as palavras, mas é algo nesse sentido). Ora, “Simplesmente Alice” é tão simples quanto às idéias que a personagem tinha para um roteiro. E se Woody não seria aceito por essa grande massa acéfala que ele critica, ele faz assim mesmo. E que o público o escolha. Simples e audacioso ao mesmo tempo.

Ao som de muito tango, “Simplesmente Alice” tem algumas cenas antológicas (entre elas um encontro entre Alice e o fantasma de seu primeiro marido, na figura de Alec Baldwin), e Woody se dá o direito de acrescer no seu filme coisas como mediunidade e a invisibilidade sem parecer cafona por não ter nada a ver com a questão inicial do filme. Afinal, para quem está acostumado com uma narrativa que transcende o sentido literal das coisas, jamais diria que “Simplesmente Alice” é algo “que foge da realidade”. Ao fim de tudo, o filme é daqueles que te faz ter quase duas horas de bons momentos típicos de Woody Allen.

quinta-feira, 8 de março de 2012

As Mulheres do Sexto Andar [2010]


(de Philippe Le Guay. Les Femmes du 6ème Étage, França/Espanha, 2010) Com Fabrice Luchini, Sandrine Kiberlain, Natalia Verbeke, Carmen Maura, Lola Dueñas, Audrey Fleurot. Cotação: ****

Voltar a morar em São Paulo, no meu caso, significa retomar alguns costumes que eu tinha - e que muitos cinéfilos também possam ter. Para matar algum tempo e evitar pegar aquele trânsito em horário de pico, nada melhor do que entrar num cinema e matar o tempo que for para uma volta pra casa mais tranqüila (por sinal, eu conheço gente que pega um cineminha só pra aproveitar o ar condicionado nos dias de muito calor, ou aproveitar enquanto o carro se encontra no lava-rápido). Mas enfim, o que importa aqui é que numa dessas oportunidades de matar o tempo pegando uma sessão na Rua Augusta, acabei me deparando com este filme que eu só conhecia de nome, e nem sequer sabia do que se tratava. Por já ter assistido boa parte dos outros filmes em cartaz e não ter muita flexibilidade de horário, acabei optando por este, e confesso, foi um delicioso passatempo.

As tais mulheres do sexto andar são nada mais do que domésticas espanholas, que durante os anos 60, pareciam ser tradicionais nos cuidados da casa de franceses. O filme se passa justamente na França, onde essas mulheres se instalavam nas proximidades da casa das patroas, muitas vezes deixavam casa e família numa Espanha devastada no pós-guerra civil e sob o domínio do ditador Francisco Franco. No prédio do filme, as espanholas estão em peso. Após o pedido de demissão de uma delas, o casal Jean-Louis Joubert (Fabrice Luchini) e Suzanne (Sandrine Kiberlain) tenta encontrar alguma empregada tão boa quanto. Até que chega até eles a graciosa María Gonzalez (Natalia Verbeke), recém-chegada na capital francesa e ainda com algumas dificuldades no idioma. A aproximação entre Maria e Jean-Louis vai crescendo até que, aos poucos, ele vai percebendo a importância das espanholas que vivem tão perto dos seus patrões, e ao mesmo tempo, estes tão pouco ainda sabem sobre elas.

Mesmo que aparentemente seja uma sinopse dramática, “As Mulheres do Sexto Andar” é considerado uma comédia até leve, sem grandes baques e quase nenhuma situação melodramática. É interessante ver o retrato da relação entre as patroas francesas e suas empregadas espanholas de uma maneira tão lúcida e cômica. É uma comédia de costumes básica, que certamente agradará o grande público, caso o filme seja descoberto. Cheguei até a lembrar de “Domésticas”, ótimo filme de 2001 de Fernando Meirelles, com o início acrescido de depoimentos das espanholas, uma mais impagável que a outra. Mas as semelhanças ficam só no início mesmo. Aqui, os patrões chegam a ser mostrados, por um tempo até excedido, mas é tudo tão bem desenvolvido que nem nos importamos em dividir a atenção entre os franceses e os espanhóis, porque é justamente a curiosidade do protagonista pela vida das mulheres do sexto andar que vai funcionar como fio condutor de todo o desenrolar da história.

As personagens, que entre elas, são interpretadas até por musas de Almodóvar, como Lola Dueñas e Carmen Maura (de "Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos"), são um tanto quanto caricaturais, umas bem mais do que outras. Mas o filme é tão gracioso que até isso fica perdoável, pois a intenção, como disse lá no início do texto, é atingir o grande público, que muitas vezes, não tolera personagens mais dúbios. Então, nada melhor do que investir na caricatura ou até mesmo em algumas saídas forçadas (nunca uma aula de investimento econômico foi tão didática e superestimada). Mais tarde, pesquisando sobre o filme, descobri que também é uma espécie de autobiografia, já que o diretor e escritor Philippe Le Guay tinha um pai corretor da bolsa, assim como o protagonista, e também chegou a ter uma empregada espanhola em casa durante a infância. Ou seja, é mais um elemento que garante ainda mais aceitação do público. 

E nesse caso, esse mesmo público deveria (re) conhecer a obra.

terça-feira, 6 de março de 2012

A Guerra Está Declarada [2011]


(de Valérie Donzelli. La Guerre Est Déclarée, França, 2011) Com Valérie Donzelli, Jérémie Elkaïm, César Desseix, Gabriel Elkaïm, Brigitte Sy. Cotação: ****

Apesar de “O Artista” ser taxado como filme francês (porém, rodado na América e fazendo apologia a ela), foi esse “A Guerra Está Declarada” que foi o representante oficial da França como possível indicado a melhor filme estrangeiro para a premiação desse ano. Trata-se de um filme pequeno, extremamente barato e com um tema nada convidativo. Tem um leve tratamento documental, já que foi escrito por Valérie Donzelli e Jérémie Elkaïm, o casal protagonista (a primeira também é a diretora do longa), baseado num fato acontecido com eles, quando tiveram que enfrentar uma fase bastante difícil: o filho deles (sim, eles também são casados na vida real) passou por problemas de saúde. Muita coisa vista no filme é real, como por exemplo, tudo o que se passa no hospital, como os profissionais de saúde, e até mesmo algumas cenas chegam a ser uma espécie de simulação do que foi vivenciado pelos “cabeças” do filme.

Na história, vemos o início do romance entre Roméo (Jérémie Elkaïm) e Juliette (Valérie Donzelli), a partir do momento em que eles se conhecem em uma festa. Assim como o casal homônimo de Shakespeare, ambos já brincam com o fato de que terão um final trágico. Eles logo se casam, conseguem um apartamento pra morar, e Juliette fica grávida. A criança, nos primeiros meses de vida, não pára de chorar. Aparentemente, nada tem de errado, até que mais crescido, o bebê apresenta uma questionável dessimetria facial. Isso leva os pais a procurarem ajuda médica, até receberem uma notícia funesta: o filho deles, agora com dois anos, está com um câncer raro na região cerebral. Agora, o jovem casal precisa reunir forças com familiares, mas principalmente, entre si, para conseguirem lidar com uma guerra que, por enquanto, está apenas declarada.

Eu sempre falo sobre o quanto é batido falar sobre câncer em produções do cinema e da TV. As chances de filme ou séries caírem no clichê são enormes. Em “A Guerra Está Declarada”, ainda existem chances ainda maiores de cair no acomodo, pois estamos assistindo a uma obra que deixa os pais num primeiro plano, em como eles vão reagir a uma batalha tão difícil. Mas quando se trata de cinema francês, seria muito ingênuo achar que tudo seria um enorme chavão. O filme tem uma forma interessante de contar a história, nos faz entender - por mais difícil que seja - o mínimo possível dessa dor e sensação de incapacidade que os pais ficam em uma situação como essa. E isso se deve, é claro, ao trabalho excepcional de Valérie Donzelli, a grande idealizadora do projeto, uma arquiteta de formação que abriu mão da sua carreira acadêmica para se entregar à sua arte, já presenciada em filme como “7 Ans” (2006) e La Reine dos Pommes” (2009).

Se tem algo que incomodou bastante, foram os números musicais sem sentido que aconteceram no decorrer da história. A impressão que dá, é que filme europeu, pra garantir uma vibe mais “moderninha”, tem que ter, como que por obrigação, cantoria entre os personagens para dar margem à alguma evolução na linguagem do filme. Essas inserções deram uma destoada no filme, que não carecia de nenhum tipo de elo com musicais. Porém, nem mesmo isso faz “A Guerra Está Declarada” cair por completo. O filme é realmente genioso, além de ser o primeiro filme realmente bom a entrar em cartaz nos cinemas brasileiros em 2012 (estreou na primeira semana de janeiro). Pena não ter conseguido a sua vaga no Oscar garantida, pois assim teria bem mais visibilidade. Espero que seja mais bem visto por conta do boca a boca. Qualidade, pelo menos, o filme tem.

quinta-feira, 1 de março de 2012

A Invenção de Hugo Cabret [2011]


(de Martin Scorsese. Hugo, EUA, 2011) Com Asa Butterfield, Ben Kingsley, Sacha Baron Cohen, Chloë Grace Moretz, Ray Winstone, Emily Mortimer, Christopher Lee, Helen McCrory, Michael Stuhlbarg, Frances de la Tour, Richard Griffiths, Jude Law. Cotação: *****

Como expectador, eu sempre fui indiferente em relação ao cinema 3D. Embora tenha tido boas experiências (lembro vagamente do quão surpreendido fiquei quando vi “Avatar”), o 3D era, pra mim, mais incômodo por ter que me contentar ao ter meus óculos de grau por baixo dos óculos 3D imundos que nos são entregues na sala de exibição, do que pela sua real utilidade. Aliás, quando ao menos existe utilidade. Não é segredo que essa forma de assistir a filmes (embora não seja necessariamente recente) esteve em alta mais para impressionar em cenas envolvendo explosões, objetos lançados em direção a platéia ou algo parecido, do que ser trabalhada de forma orgânica no próprio filme. Falo tudo isso porque é notório que “A Invenção de Hugo Cabret” é a primeira obra na qual o 3D é usado para elucidar planos de fundo, explorar o campo de visão dos expectadores, e claro, impressionar nas cenas mais óbvias, como num acidente de trem ou na exibição das engrenagens dos relógios da estação onde o filme se passa. Só isso já vale para uma valiosa recomendação: se possível, veja o filme em 3D.

Passado no início do século passado, o menino Hugo Cabret (Asa Butterfield) vive dentro das engrenagens de relógios em uma estação parisiense. Órfão, ele vive de pequenos furtos e está sempre escapando do inspetor da estação (Sacha Baron Cohen) e seu dobermann. Fascinado por um autômato descoberto quando seu pai relojoeiro ainda era vivo, Hugo perde o caderno de anotações em que seria possível o concerto do tal autômato. Na verdade, o caderno é tomado por Georges (Ben Kingsley), um velho rabugento que tem uma pequena loja de brinquedos dentro da estação. Para recuperar o caderno e conseguir, enfim, consertar o autômato, ele contará com a ajuda de Isabelle (Chloë Grace Moretz), a filha adotiva de Georges, que é fascinada por aventuras graças a sua extensa lista de livros lidos. Nessa busca, eles descobrem, entre outras coisas, que o velho Georges na verdade é Georges Méliès, um dos maiores gênios da história do cinema, que renega o seu passado resumido em celulóides perdidos. Mas qual seria a relação entre Hugo, Georges Méliès e o autômato?

Não dá pra ignorar o fato de que “A Invenção de Hugo Cabret” é o filme recordista de indicações do Oscar deste ano, com o total de 11, e pra ser bem sincero, com poder de vitória apenas nas mais técnicas. O preferido de melhor filme, categoria em que “Cabret” também está indicado, está “O Artista”, outra produção que faz uma genuína homenagem ao cinema, mas a sua maneira, com um olhar mais voltado à Hollywoodland. Aqui, a homenagem fica mais por conta da história do cinema, buscada em sua essência, na figura de Georges Méliès (1861-1938), nada menos que o primeiro cineasta, no sentido mais correto da palavra. Mesmo depois da invenção do cinematógrafo pelas mãos dos irmãos Lumière, foi ele - utilizando-se de todo o seu conhecimento de ilusionista e diretor teatral - que fez o cinema-fantasia acontecer. Recentemente, escrevi sobre sua maior obra, “Viagem à Lua”, onde expus de uma maneira mais objetiva a importância dessa mente, o porquê de toda uma geração de cineastas dever algo a este homem, que mesmo depois de produzir mais de 500 filmes em sua empreitada cinematográfica, morreu miserável.

Mesmo com todo esse tratamento especial para com o cinema, e com isso, acaba construído uma relação de proximidade com o cinéfilo, o filme tem uma perceptível divisão. O começo é assumidamente uma fábula, que não é direcionado apenas ao público infantil, que nem imagina quem seja Martin Scorsese (é o primeiro filme “família” do diretor de “Os Bons Companheiros” e “Taxi Driver”). A junção entre essa primeira parte um tanto quanto arrastada e a segunda parte fenomenal é muito bem destacada por um jogo visual na história, onde o protagonista tem um sonho no qual ele próprio possui uma engrenagem dentro de si. Isso, mais uma vez, demonstra a genialidade de Scorsese, que soube dividir o filme de maneira tendenciosa, além de nos fazer concluir que o cinema 3D, do jeito como ele projetou, talvez nos conduzisse a um vislumbre tal qual aquele dos franceses assustados com o trem filmado pelos irmãos Lumière, achando que os atropelariam.

A importância da memória do cinema, e a própria sétima arte em si pode não ser algo que vá impressionar a juventude de hoje em dia. O que é uma pena. Contudo, saber que uma produção como “A Invenção de Hugo Cabret” não só surja, como também emocione o seu público, já é um indício de que a sétima arte sempre pode nos surpreender. Os aplausos que vi ao fim da sessão comprovam isso.