sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças [2004]


(de Michel Gondry. Eternal Sunshine of the Spotless Mind, EUA, 2004) Com Jim Carrey, Kate Winslet, Elijah Wood, Mark Ruffalo, Kirsten Dunst, Tom Wilkinson, Jane Adams Cotação: *****

"Abençoados sejam os esquecidos, pois tiram maior proveito dos equívocos."

A frase acima é de Friedrich Nietzsche (1844 - 1900), um dos filósofos mais amados da filosofia contemporânea. E usada algumas vezes por mal-intencionados para justificar o esquecimento de bons momentos de uma relação a dois. “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” parece querer reparar um grande equívoco: um namoro, por mais doloroso que seja, mereceria o completo esquecimento após o seu término. Ao longo do filme, sabemos que apesar das duras penas de um namoro, como os desentendimentos naturais fazem parte da dinâmica de uma relação, e não substituem a melhor das fases dessa união: a deliciosa sensação do “estar conhecendo alguém”.

O personagem de Jim Carrey, Joel Barish, fica aturdido ao descobrir que sua namorada – a hiperativa Clementine (Winslet), após dois anos vivendo com ele, resolveu tirá-lo de sua memória num consultório bem estranho. No Lacuna Inc., eles se comprometem a excluir determinada pessoa de sua memória, com todos os momentos em que conviveu com ela, através de um mapeamento cerebral, que apresentam os momentos que serão deletados em questão de horas. A desilusão de Joel o faz pagar a tal exclusão sem nem pensar melhor na situação, e durante o processo de exclusão, que é feito de trás para frente, ele se arrepende, e terá que fugir junto com Clementine, se escondendo em outros cantos de seu subconsciente.

Apesar de a história parecer confusa nesse breve resumo, “Brilho Eterno...” não é uma ficção científica enlatada. Trata-se de um filme que chega a ser poético, do jeito em que foi concebido. O roteiro é de Charlie Kaufman, um dos caras mais inteligentes da atual safra de escritores que surgiram no finzinho da década de 90 e comecinho dos anos 2000. É de autoria dele os igualmente bem bolados "Quero Ser John Malkovich" (1999) e "Adaptação" (2003), ambos reconhecidos pela Academia com indicações de Melhor Roteiro Original. Aqui ele se une a outra mente iluminada: a do diretor francês Michel Gondry, saídos de videoclipes da cantora Björk, que como os bem informados devem saber, é a cantora que preza pela originalidade em seus trabalhos. Enfim, bagagem criativa é o que não falta aqui.

Os atores estão ótimos. Jim Carrey não faz feio no drama, e não é a primeira vez que ele comprova isso. Kate Winslet é uma grande atriz, isso já é fato concebido. É de se impressionar como cada uma de suas personagens possui uma aura particular, e convenhamos, ela nem faz esforço para carregá-las com muita caracterização. Sua Clementine, de mudanças visuais, tem somente os cabelos que mudam de cor diversas vezes. Por conta desse papel ela garantiu mais uma indicação ao Oscar, a quarta de sua carreira. Os coadjuvantes, nem pensem que ficam contidos. Praticamente todos eles têm sua importância, e até a antes chatinha Kirsten Dunst e o pouco confiável Elijah Wood comprovam que, se bem dirigidos, eles podem apresentar bons trabalhos.

Quanto às revelações que o “Brilho Eterno...” contém óbvio que não posso contar, mas já adianto que apesar de terem sido adivinhadas de cara por mim (coisa que não me agrada), são muito bem acertadas no filme, e jamais soam gratuitas. São surpresas até divertidas, dando maior consistência ao texto impecável, e a edição primorosa do islandês Valdís Óskarsdóttir. A quem interessar possa, o título do filme vem de um verso escrito pelo inglês Alexander Pope (1688-1744) que diz: "Feliz é o destino da inocente vestal/ Esquecida pelo mundo que ela esqueceu/ Brilho eterno da mente sem lembrança!". Isso faz todo sentido no filme.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Matrix [1999]


(de Andy e Lana Wachowski. The Matrix, EUA, 1999) Com Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Gloria Foster, Joe Pantoliano. Cotação: *****

“Matrix” é daqueles filmes que já nascem pra ser considerado como “o grande filme do ano”. E de fato foi no ano em que foi lançado, mas não marcou somente o ano de 1999, como também é considerado um dos melhores filmes de toda a década de 90. Suas referências residem em todo seu trabalho técnico - que revolucionou a linguagem da ficção - e seu inteligente roteiro, lotado de referências bíblicas e filosóficas, costuradas numa trama até batida, saída da cabeça dos irmãos Wachowski. É também daqueles filmes que quase todo mundo viu, quase todo mundo adorou, mas quase ninguém se esforçou em entender. Mas se engana quem pensa que “Matrix” é complexo e sem sentido.

Eu não sei se já é mania minha, mas eu sempre parto do pressuposto de que esses filmes que os fãs geeks e undergrounds tomam como “complexos” são assim chamados apenas para garantir a prosaica inteligência dos que os adoram. Foi assim com a “A Origem”, “Amnésia” e até o episódio final do seriado “Lost”. Hermético mesmo é “O Anticristo”, “Cidade dos Sonhos” e “Magnólia”. Esses sim carecem, com razão, de real disposição do espectador para entendê-los.

Mas enfim, a questão aqui é outra, e “Matrix” não merece abstração.

Thomas Anderson (Reeves) é pacato funcionário de uma empresa de softwares, mas a noite, enclausurado no apartamento onde vive sozinho, ele vive no submundo da internet, sendo um hacker de codinome Neo. Até que um dia ele é contatado por Morpheus (Fishburne), que acredita que ele é um escolhido (“The One”). Para o quê, Neo ainda nem faz idéia. É então buscado por Trinity (Moss) para conhecer Morpheus, e a partir daí, Neo descobre que tudo o que viveu na verdade fez parte de uma ilusão, e que o mundo real precisa do escolhido (uma espécie de Predestinado) para conseguir garantir o futuro da humanidade, que duzentos anos a frente se tornou cultivo de máquinas que dominaram o mundo completamente. Se ele for o escolhido, ele poderá ser o único capaz de desviar do Agente Smith (o vírus da matrix) e salvar a todos.

Entre inúmeras explosões, cenas incríveis de helicópteros indo contra prédios, lutas de kung-fu milimetricamente coreografadas e novos conceitos de efeitos especiais, como o bullet time, que mostra, em câmera lenta, o trajeto de uma bala, enfocado um movimento de 360º graus da câmera. Julgando por suas características visuais e sonoras, “Matrix” é impecável. É tanta competência técnica, que dá pra relevar algumas artimanhas sofríveis do roteiro, como aquela idéia fajuta de que o amor é capaz de salvar (e até ressuscitar), e a seqüência de salvamento de Morpheus, que se prestarmos atenção, fica difícil aceitar que o cara saia dali sem estar mais furado que um coador, tamanho o número de balas na cena em questão.

Mas, afinal, que raios é a matrix? (Só lembrando que o resto do texto só é recomendável para quem já viu ao filme OU para quem não se importa em assisti-lo sem ter um conhecimento básico da coisa, mas evitarei spoilers).

A matrix - pra falar sem se desviar muito - nada mais é do que uma realidade criada por uma inteligência artificial, a saber, criação das máquinas que dominaram o mundo num futuro distante. Ou seja, é como se nossa vida não passasse de uma ilusão. Nem eu estou escrevendo esse texto, e nem você está lendo. Na verdade, estamos vivendo numa incubadora, servindo de fonte de energia para máquinas, que criaram a tal matrix para nos manter dormindo e distraídos. O tão comum déjà vu (aquele sensação de “eu já vivi este momento antes”) trata-se de uma falha dessa realidade criada, e somente um messias (o Escolhido) seria capaz de reconhecer todos os meandros dessa realidade, e assim, salvar a todos, os acordando para a vida real.

Isso é o que devemos saber de uma maneira geral para este filme. As seqüências “Matrix Reloaded” e “Matrix Revolutions” (ambos de 2003) vão intricar ainda mais, porém, não manteram a série no auge, nem serão tão bons quanto esse primeiro filme.

Falando também de maneira rápida a filosofia da saga, Neo é, grosso modo, o prisioneiro da Caverna de Platão que conseguiu fugir e ver a verdadeira realidade (o mundo das Idéias), o fazendo desacreditar em tudo o que ele julgava ser o real antes de sair da Caverna. Esse mito era usado por Platão como alegoria para mostrar que a nossa realidade - que tomamos como real - é apenas uma simulação (no filme, isso é a matrix), e não conhecemos as coisas, somente as recordamos (num processo de reminiscência), já que quando vivíamos num mundo das Idéias, entes de nascermos, já tínhamos conhecimento das coisas de antemão. O oráculo do filme (tão chata quanto enigmática) é referência clara ao Oráculo dos Delfos, que tinha em sua entrada a inscrição “Conheça-te a ti mesmo”.

Para Neo (e para nós, segundo a filosofia platônica) é primordial que ele conheça a si mesmo, pois assim, ele poderá conhecer detalhadamente O QUE É a matrix.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Touro Indomável [1980]


(de Martin Scorsese. Raging Bull, EUA, 1980) Com Robert De Niro, Cathy Moriarty, Joe Pesci, Frank Vincent. Cotação: ****

Corre o boato de que Robert De Niro teria salvado a carreira de Martin Scorsese com esse filme. Ele, praticamente sozinho, idealizou esse projeto após ter lido a autobiografia do polêmico pugilista Jake La Motta, e já se imaginou encarnando o tal lutador. Fazer com que Scorsese aceitasse a empreitada era um grande desafio, afinal, além de não passar pela cabeça do diretor fazer um filme ligado aos esportes, Scorsese passava por uma situação delicada na vida pessoal por conta de sua dependência química. De Niro, ainda assim, juntou forças, e após anos tentando convencer o amigo (com quem já havia trabalhado em “Taxi Driver”), fez de tudo para estrelar um de seus trabalhos mais impressionantes.

Através de uma direção impecável de Martin Scorsese, acompanhamos pouco mais de vinte anos da vida de Jake La Motta (De Niro), grande campeão de peso médio, desde o início de sua carreira, ao lado seu irmão e empresário, Joey (Pesci), com uma fúria nos ringues tão característica, que acabou ganhando o apelido de “touro do Bronx”. Mas essa personalidade forte não ficava somente na hora das lutas. Jake tinha um temperamento difícil, que fazia com que ele tivesse problemas tanto no seu casamento com Vickie (Moriarty), quanto em sua vida profissional, já que era visto como um grande problemático pelos manda-chuvas do boxe.

Jake, por si só, é uma figura interessante. Não a ponto de ter uma autobiografia levada às telas (se não fosse Scorsese, o filme poderia ser passível ao esquecimento), mas sua vida daria um grande trabalho de atuação, e foi justamente isso que De Niro enxergou e quis, assim, tocar o projeto. Machista ao extremo, Jake é daqueles que acreditam que sua masculinidade impõe-se em qualquer lugar. É curioso notar que, graças ao seu comportamento extra violento, o que ele consegue nos ringues com glórias, ele perde em sua vida pessoal em derrotas. Seu irmão e sua esposa convivem com ele a base do medo (longe de ser respeito) Com grandes problemas com o peso e em conseguir lutas importantes (seu orgulho era tão grande que apanhava por minutos, sem nunca cair), ele acaba abrindo um bar nos anos sessenta, onde vira uma espécie de comediante do lugar. Claro, sem dinheiro e com problemas na justiça.

Robert De Niro aproveitou tudo o que o personagem tinha para oferecer. Cheguei a desacreditar quando vi, logo na primeira cena, o ator com quilos a mais, com a face desconfigurada (era uma cena onde Jake dava um testemunho, já 1964). Sua cara de louco era impressionante, mas nada se compara às suas mudanças corporais para o papel. Merecidamente, De Niro ganhou seu segundo Oscar (já havia ganhado a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante por “O Poderoso Chefão II” em 75). Desde então, nunca mais ganhou. Muitos, inclusive, acreditam que depois de “Touro Indomável”, ele nunca mais repetiria uma atuação tão elogiável.

Lindamente fotografado por Michael Chapman, o filme possui a ousada decisão de ser todo em preto-e-branco. Alguns assumem que era para dar uma maior veracidade documental, outros, entretanto, dizem que a intenção era se diferenciar de “Rocky” (1976), até então um clássico recente do gênero, estrelado por Sylvester Stallone. Mas a ideia do filme sem cores (o que é alterado em alguns arquivos pessoais, onde aparecem alguns momentos coloridos), foi uma grande sacada de Scorsese, que aceitou um desafio mais difícil, já que muitas coisas teriam que ser adaptadas, como por exemplo, a incrível quantidade de sangue nos momentos das lutas, terem que ser feitas com chocolate para dar maior vivacidade nas cenas. Lutas, que por sinal, são brilhantemente dirigidas por Marty, que não deixou que “Touro Indomável” se tornasse aborrecível (como boa parte dos filmes sobre esportistas são).

“Touro Indomável” ainda é tido por muitos como um dos melhores filmes biográficos de um esportista. O que não é grande elogio, já que esses filmes tendem a não serem tão bons (salvo algumas raras exceções). Resta para elogios a uma aula magnífica que Scorsese dá, além do trabalho incrível de Robert De Niro e Joe Pesci. Os três irão trabalhar juntos novamente em “Cassino”, de 1995.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

A Partida [2008]


(de Yôjirô Takita. Okuribito, Japão, 2008) Com Masahiro Motoki, Tsutomu Yamazaki, Ryôko Hirosue, Kazuko Yoshiyuki, Kimiko Yo. Cotação: ***

Foi este filme japonês que desbancou o favoritismo do francês “Entre os Muros da Escola” e o israelense “Valsa Com Bashir” (que chegou a ganhar o Globo de Ouro) na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2009. Uma vitória que me surpreende em partes, pois os outros dois filmes citados são de uma nova geração que prepondera nas últimas escolhas da Academia em categorias mais tradicionais. Porém, muitos ocidentais são profundamente tocados ao se deparar com a sensibilidade do cinema oriental. “A Partida” é um exemplo claro para confirmar isso. Não se trata de uma jóia e praticamente não contém nenhuma novidade, e seu sucesso provém de seu tema que é universal: a morte.

Com o fim de uma orquestra na qual é violoncelista, Daigo Kobayashi (Motoki) fica desnorteado, sem saber como irá arcar com as dívidas. Casado com Mika (Hirosue, cantora de muito sucesso no Japão), ele terá que sair de Tóquio, onde eles vivem, para voltar à cidade onde cresceu, onde possui uma residência deixada por sua mãe. Ao procurar trabalho, um anúncio de uma agência “que cuida de jornadas” lhe chama a atenção. Imagina se tratar de uma agência de turismo, mas ao chegar ao local, descobre que o chefe, o ancião Ikuei Sasaki (Yamazaki), é responsável por um ritual de passagem dos mortos, antes de serem acomodados no caixão para serem velados. A proposta de trabalho, que parece ser irrecusável financeiramente, poderá ser muito mal vista pelos amigos e pela própria esposa de Daigo.

Tratar de morte, no Japão mostrado no filme, ainda é um tabu. O rito de passagem no qual mencionei no texto se destina a purificar o velado, num processo de “acondicionamento”, ao que eles denominam o ritual “nokanshi”. Tudo sendo assistido pela família do ente perdido. Mas por que esse é um trabalho tão passível de preconceitos? Em certo momento, Daigo chega a ser apontado como exemplo de um homem que faz um trabalho indecente. Certamente por ser uma tarefa na qual há relação direta com o morto. Algo considerado sujo. Daigo sofre imensamente no começo, já que nunca tinha visto um cadáver na vida. E sua primeira experiência, por sinal, é traumática.

Como Daigo irá se conformar com a situação e aceitar que esse trabalho é tão nobre quanto qualquer outra é a grande aposta do filme. Além de construir, de maneira bem conduzida, laços com personagens que se mostrarão passíveis à morte de uma maneira abaladora. Daigo, no processo de enxergar a importância de seu trabalho, passará por estágios interessantes, como a análise de sua vida atual e passada (ele foi abandona pelo pai, que deixou sua casa quando ele ainda era uma criança), além de deturpar sua visão da “carne morta” e a “carne viva” (como é mostrado na cena onde ele quer abraçar sua esposa e sentir simplesmente o calor e a pulsação do corpo dela). Ainda há espaço para a óbvia metáfora dos salmões, que se debatendo na água até a morte por opção, fazem isso para “querer saber de onde vieram”.

É possível tirar explicações da morte, assim como concluímos ao assistir “Six Feet Under”. Aliás, “A Partida” serve de rodapé para a série da HBO. Pelo que vi, na interpretação mais concentitual sobre a morte, é que ela é tratada como uma porta, uma passagem de fato, como o título já sugere. Mas não basta o título de uma obra. É preciso dar a oportunidade para os personagens lidarem com essa questão. Nesse ponto, “A Partida”, de forma quase inexplicável, conseguia me emocionar. Não exatamente nas cenas que tinham essa intenção, mas aconteciam. Em contrapartida, cenas áreas mostrando Daigo tocando um violoncelo infantil num lugar alto e verde eram lindas, mas que davam ao filme um tratamento mais fantasioso, difícil de unir com as outras que rendiam mais valores.

O que importa é que “A Partida” agrada a grande maioria, sinal que a intenção do filme é alcançada com êxito. Eu ainda fico com os bons momentos, onde a morte é tratada com maior sinceridade.